Anorexia e bulimia - A relação com a comida. (contém trechos retirados de artigo publicado)
- mayarasouzapsi
- 4 de jun. de 2023
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Silvia Amigo (2007) psicanalista argentina, resgata o princípio da relação do sujeito com o Outro para explicar que a alimentação irá muito além da necessidade de nutrir um corpo, de fazê-lo crescer. Diferente do ato instintivo de respirar, que não necessita da relação com o Outro, um bebê não poderia sobreviver por muito tempo, ele necessita que a comida chegue até ele, necessita de um Outro que se disponha a alimentá-lo.
Abordaremos essa função do Outro na relação materna, na qual, o ato de alimentar-se, se torna uma importante função civilizatória. Uma mãe “apenas boa” como Silvia Amigo vai resgatar do termo Winnicottiano “good enough”, vai apostar num sujeito, não só alimentando seu filho lhe dando o peito, mas também falando, mesmo que este não a entenda. Assim, não se trata apenas de pulsão oral, mas também, invocante. “Une-se a comida à ação de falar”. (Amigo, 2007)
Essa experiência de dar ao bebê o peito e de falar com ele, vai instaurando pausas e fazendo um ritmo, o fort-da, o vai e vem, o some e aparece. Assim, como um bebê que chora e cessa seu choro quando sua mãe aparece, fazem-se pausas. Nessas pausas vai se construindo uma diferenciação entre o segundo e o primeiro momento, formando uma seriação (s1, s2,...). Incluímos então o olhar da mãe, aposta que faz ao olhar o corpo do seu bebê e nutri-lo. Essa mãe também segura seu bebê, sustentando-o muscularmente. Dessa forma, não é apenas a pulsão oral que está em jogo, mas também a invocante, a escópica e a anal, isso significa que então o ato de comer se faz numa intrincação pulsional. Assim, a mãe, encarnada como Outro irá passar a lei da palavra e da cena ao alimentar seu bebê. (Amigo, 2007)
Lacan em seu seminário sobre a Transferência, onde encontraremos o movimento de repetição, fala sobre a relação entre o amor e a falta, ao retomar o texto de Platão, “O Banquete”. Lembra-nos então, quanto à busca do outro como uma tentativa de resgate daquilo que não possuímos, objeto perdido entre o primeiro momento e o segundo, aquilo que já não se têm mais. E isso que não possuímos é o que nos separa da necessidade fisiológica e nos coloca em busca da promessa de satisfação. (Lacan, [1960-61] 2010)
Se a comida é apenas comida como necessidade fisiológica, se não há parcializações de pulsão, Silvia Amigo (2007) diz que então esta é uma comida fanática, “vetorializando um gozo mortal, não escandido pelo significante nem banhado pelo olhar”. Lacan ([1960-61] 2010), nos diz sobre a importância justamente de ser aquilo que nos falta, no hiato entre o vai e vem, na parcialização das pulsões, contrário ao peito que só alimenta, que nos colocamos em movimento, em busca.
No livro 11, “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”, Lacan dirá sobre o conceito de transferência implicado ao conceito de repetição. “o que não pode ser rememorado, se repete na conduta” (pg 129). Lacan deixa claro que a repetição nada tem a ver com estereotipias de conduta, mas repetição em relação a algo sempre faltoso. Nenhum objeto pode satisfazer a pulsão. (Lacan, [1964] 2008)
Mas, Silvia Amigo também nos lembra de outra via presente na alimentação, a da função paterna. Retoma assim, o banquete totêmico encontrado na obra de Freud em seu texto “Totem e tabu” (1812-13), dos filhos que matam o pai que goza se colocando livre de qualquer proibição, mas que impede os homens de qualquer gozo sexual. Ao assassinarem o pai, os filhos fazem um pacto de comê-lo, incorporando assim um fragmento da lei. (Amigo,2007)
Toda comida social, se submete às regras, um ritual assim como o banquete totêmico, com regras sobre o que se diz, o que se come, o lugar que cada um ocupa.
Silvia Amigo resgata outro banquete, àquele que já nos referenciamos anteriormente ao falar da repetição a partir da obra de Lacan sobre a transferência, O Banquete de Platão. Ela entende que, neste texto, o que se faz é falar sobre o amor, mas considera que faz parte de um ritual, o sentar-se a mesa, no local indicado, beber, pausar, falar, o cuidado com a cena, com a vestimenta, com a limpeza. Não o fazer seria uma grosseria. Há de se comer regradamente. Em O Banquete, não há comilança apenas por comer, apenas para alimentar o corpo, há regras. Assim une-se a função materna e paterna em torno da alimentação,
Tendo um resíduo do gozo primário de comer misturado com a lei da palavra – come-se, fala-se, come-se. E se cuida da cena, há um cuidado escópico: onde nos sentamos, como nos vestimos, como nos conduzimos nos gestos. Então come-se, olha-se, come-se” (Amigo, 2007, pg.129)
Para exemplificar melhor o que estamos levantando do que Silvia Amigo e também Lacan estão postulando quanto ao Banquete de Platão, eis uma cena da qual podemos extrair do texto: Há um encontro de Aristodemo com Sócrates, o qual estava banhado e de sandálias como não costumamente o fazia. Embelezado para ir à casa de um “belo”. Aristodemo acompanha Sócrates ao jantar sem convite, e assim, julga a possibilidade de estar sendo vulgar. Quando chega ao jantar, é recepcionado por um servo e Agatão em seguida diz que não o encontrou um dia antes para lhe convidar. Agatão indica o local ao qual Aristodemo deveria se sentar, ao Lado de Eriximaco. Sócrates chega quando já estavam jantando, e então segue a cena “reclinou-se Sócrates e jantou como os outros, fizeram então libações e, depois dos hinos ao deus e dos ritos de costume, voltam-se à bebida.” (Platão,1995)
Voltando à necessidade deste Outro que se torna imprescindível para se alimentar e sobreviver no início da vida, Silvia Amigo lembra-nos que ninguém escapa desta relação com a alimentação, sendo assim, independeria de estrutura clínica encontrar transtornos alimentares ou “eating disorder”, como ela diz ser categorizado pelos americanos. Inclusive é a partir dessa relação primordial com o Outro, da qual a alimentação está incluída, que uma estrutura clinica vai se definir. Pensando na psicose, facilmente encontram-se problemas na alimentação, e assim não poderia ser diferente, já que seu vinculo com o Outro está seriamente lesionado.
Como já dito, os transtornos alimentares não seriam exclusividade das psicoses, eles estariam para todos, para qualquer condição de vida humana. Pode-se encontrar essa relação da alimentação com os estados de sentimento, com a imagem corporal, assim como, nos sintomas em suas infinitas formas de manifestação.
Uma manifestação histérica, por exemplo, se daria pelo fenômeno das massas, pelo traço identificatório do qual a histérica busca para simular, fazer semblant, aos olhos do Outro. Uma histérica pode produzir qualquer sintoma, dentre eles podemos encontrar um transtorno alimentar, mas este jamais será seu único recurso. A histeria também encontrará recurso de fala, na relação transferêncial, se não fala, não é que não tenha recursos de palavra, mas sim porque momentaneamente os têm fora de jogo. “Temos o exemplo, de Emmy von N., relembra-nos Amigo, que posta em transferência, vai falar, inclusive do transtorno alimentar, vai significá-lo, vai historicizar”. (Amigo, 2007)
Tendo em vista essa pluralidade de possibilidades, não se trata de especificar ou fazer uma ligação entre uma estrutura e a manifestação de um transtorno alimentar, mas realmente de apontar para a relação com o Outro e suas consequências. Como Silvia Amigo vai defender, ao longo de seu texto “o que significa comer?”, não nos detenhamos em dizer que esse fenômeno se trataria de uma psicose pela lesão da relação com o Outro ou um fenômeno histérico e sintomático. Pelo menos não se trataria exclusivamente disso, poderia ser, mas não o é somente.
Silvia Amigo vai chamar de anorexia ou bulimia veras, condição que independeria de uma estrutura, que acomete independente de uma psicose, perversão ou neurose. Esta se daria então, pelo único recurso que um sujeito teria de colocar o Outro em falta, um real clínico que não se pode categorizar.
Para todo sujeito é vital encontrar onde alojar-se no campo do Outro. Claro que para encontrarmos alojamento tem que haver um quarto disponível. Se, chega se em um hotel em que não há lugar, ficar-se-á de fora. Silvia amigo utiliza desta metáfora para explicar a posição do sujeito na relação com o Outro, onde é necessário encontrar um lugar vazio, uma falta em que se possa encontrar alojamento e enfim, poder-se perguntar, o que o Outro que de mim?
Assim, adentramos no campo da fantasia, tão singular e importante. Silvia Amigo nos relembra a fantasia das crianças sobre sua própria desaparição, sua morte, seu velório e se alguém sentirá sua falta, uma tentativa de fazer falta no Outro. Essa seria a primeira tentativa da seriação de fantasias na montagem da fantasmática. Ao conseguir essa seriação, essa parcialização e então oferecer um pequeno pedaço ao Outro, sua castração, não seria mais necessário oferecer sua própria desaparição, como é na anorexia que Silvia Amigo nomeia de Anorexia Vera, e que só resta sua própria desaparição para mobilizar o Outro, oferecendo então ao olhar deste, sua cadaverização, avisando e ameaçando de sua falta, não como faz a histérica, mas sim jogando com a morte real. Na bulimia Vera, encontraremos um ato sem regras, secreto, da comida crua, misturada, sem laço social e sem lei, sem a cena da qual falávamos anteriormente. O sujeito se torna escravo do gozo de comer. Uma comida asquerosa que só se pode tirar do corpo, vomitando. Novamente, o que diferencia estas da posição histérica, é não há um vai e vem, há apenas uma única via. (Amigo, 2007)
Referencias:
AMIGO, S. (2005) Clinica dos fracassos da fantasia. Rio de janeiro: Companhia de Freud, 2007.
PLATÃO. O banquete. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.
LACAN, J. (1964) Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2008.
_____. (1960-61) A transferência. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2010
